Por outro lado, se não havia família materna, havia a paterna. Esta se tornou a família que conheci e que se fez minha. Também aí aprendi muita coisa. Meu pai, Nicolau (sim, Nicolau e Alexandra) foi um homem bom e amoroso. Não era afeito ao trabalho, embora no Líbano, tenha sido considerado um homem trabalhador. Cuidou da família de oito irmãos por ser o mais velho, casou as irmãs e viu seus compromissos cumpridos, porém, não fez o mesmo com a esposa e suas quatro filhas. Afetuoso e carinhoso, deu às filhas o amor de que era capaz de sentir e em nome desse amor, sua ausência é profundamente sentida por mim todos os dias de minha vida. E meu agradecimento a ele é eterno por ter sido exemplo de honestidade, de caráter e, principalmente, de amor pelas filhas, mulheres de sua vida.
Da família de meu pai há lembranças que também não quero esquecer, porque marcaram minha alma e minha vida. Como poderia me esquecer de uma lágrima que caiu dos olhos de minha tia na massa do pão que seria servido na missa de sétimo dia de morte de seu filho de trinta e três anos? Eu vi, senti, chorei e entendi. Já era o segundo filho morto. Ela perderia mais dois em seguida. Está de pé, mas não mais sorri. Depois de prantear quatro filhos jovens, ela me pergunta todos os dias se estou bem e se preciso de alguma coisa e eu me pergunto como ela ainda pode se interessar pela minha vida com o coração tão despedaçado.
Como não aprender com essa mulher de olhos permanentemente marejados a lição máxima de como sobreviver após grandes tragédias? É uma mulher forte, embora sinta em meu coração que sua alma grita por libertação. Não posso dizer que ela é resignada. Tampouco posso dizer que sua capacidade de amar expirou – ela tem mais quatro filhos. Só posso dizer que sinto, muitas vezes, a vontade de dar a ela meu ombro ou meu colo para assim fazê-la se sentir protegida e amada. Eu a sinto muito só. Por outro lado, é mais uma dentre as mulheres árabes que conheço e que tanto ensinam a arte de viver.
Minha tia sempre foi uma das melhores amiga de minha mãe. As duas sempre se respeitaram e se viam com muita freqüência, até que ambas não conseguissem mais andar. Falam-se por telefone, o que acho um terrível capricho do destino (?). E minha mãe, por não mais vê-la, pouco se lembra dela e quando se lembra, diz que quer visitá-la sem saber que isso não se dará.
Alexandra sente solidão e também não sabe – apenas sente. Já não recebe visitas, porque as pessoas não têm paciência e se desculpam dizendo que não querem vê-la assim tão esquecida de suas lembranças. Eu não me importo com esse tipo de ausência – simplesmente, tento cobrir as perdas. Aí, me ocorre que ela sempre conviveu com uma terrível solidão. Perdeu o pai ainda criança e os irmãos, depois de certo tempo, saíram do Líbano para trabalharem na África. Em seguida, todos se casaram e tomaram seus rumos. Ela veio para o Brasil, onde, sem sequer conhecer a língua deste país, iniciou o que seria sua grande jornada de pedras e de solidão.
Meu pai, aqui chegando, passou a trabalhar com vendas de cereais por atacado, atividade que exerceu por poucos anos, porque logo abraçou o vício de jogos de azar. Perdeu o que tinha e nunca mais trabalhou. Ela assumiu, então, o papel de mãe e de provedora. Foi discriminada e alvo de críticas, foi ignorada e humilhada por parentes, afinal, era pobre e para o povo árabe, dinheiro é fundamental - não tê-lo é uma condenação ao desprezo e à exclusão. Tendo sido banida da própria família e, mais tarde, excluída pela maioria dos parentes, entregou-se inteiramente a duros trabalhos e à criação das filhas. Esqueceu-se da vida abastada que levou quando solteira, esqueceu-se do orgulho que a caracterizava por ser modelo de elegância e de bom convívio social – esqueceu-se de si própria e, na sua enorme solidão, chorava às escondidas: a saudade da família sempre foi seu sua grande dor.
Exemplo de mãe, esposa, e mulher.
ResponderExcluirTemos muito a aprender com suas histórias e estou louca pra continuar lendo e aprendendo um pouco mais sobre sua vida!
Saleninha. Retomando a história, devo lhe confessar que, ao escrever tudo isso, não estou remexendo num baú esquecido num porão, mas, sim, nas minhas mais vivas memórias que jamis adormeceram. Beijos.
ResponderExcluir