Neste exato momento, com a manhã se despedindo e deixando a vaga para a tarde chuvosa, minha mãe toma seu café da manhã, após o banho diário. Minha boca está amarga, resultado da pergunta que ela faz assim que desperta: "Onde está minha mãe? Hoje ela não veio me ver". A saudade da mãe (Sara Bittar) falecida há mais de 25 anos, hoje a maltrata mais que nunca, afinal, ela retorna à sua infância e deseja a proteção e os carinhos da única pessoa da família que não a abandonou. E eu minto. Digo a ela que a mãe já está velha e não mais se locomove. Digo ainda que brevemente iremos ao Líbano para ver a mãe na casa que ela ainda julga ser dela. Ela se acalma até a repetição da pergunta momentos depois - serão dezenas de vezes durante o dia.
Após o café, ela tenta dormir no mesmo sofá, mas não tranquilamente como há pouco tempo. Seu sono é tumultuado, quem sabe, por lembranças confusas de um passado que, teimosamente, ainda insistem em machucá-la. Ao final deste sono, sempre diz: "Todos me abandonaram, menos minhas filhas". E volta a se calar por mais um intervalo.
Aqui, frente ao meu computador, digitando este texto, tento contar quantos braços tem a solidão... Qual é o tamanho de cada braço e quão dói a fincada deles em nosso coração. Será que o sangue invisível jamais para de verter? Será que as cicatrizes dos cortes desaparecerão algum dia? Como preencher o vazio deixado por esta solidão na alma de alguém a quem tanto amamos? Como se pode ter momentos felizes, quando temos colada no nosso coração a dor de uma mãe, assim tão especial e tão única? Difícil encontrar respostas para perguntas tão difíceis. E eu? Como lidar com tanta impotência quando minha mente se martiriza em buscar soluções para situações tão dolorosas? Tento buscar no passado. Nas mulheres fortes que fizeram e/ou fazem parte de minha história - nas mulheres árabes que circulam nas minhas memórias. E para ser mais fiel, busco também nos homens árabes que conheci, por que não?
Deixo minha tia um pouco de lado e entro numa outra lembrança pincelada de detalhes que parecem vindos de histórias em quadrinhos só para adultos.
Minha mãe, como já disse, foi uma transgressora na sua juventude (felizmente). Quebrou regras, ignorou normas criadas não sei por quem, casou, descasou e casou novamente, numa época em que isso significava vergonha. Fez escolhas certas e erradas como todo ser humano. Foi amada, invejada. Amou e desamou. Desafiou e foi desafiada. Lançou moda e fez poses para fotos. Ficou na memória dos que a admiraram e foi esquecida por aqueles a quem amava. Da família, seu nome foi banido - os sobrinhos não sabiam absolutamente nada sobre ela, porque os irmãos não pronunciavam seu nome. A intolerância, a maldade, a incompreensão e o desprezo desta família não tiveram nem têm limites. Na verdade, não sou capaz de entender como minha mãe pode ser tão amorosa, tão próxima dos parentes e amigos e tão solidária, tendo feito parte desta família de sentimentos tão primitivos.
Lembro-me bem de como ela aguardava a chegada do carteiro, na esperança de receber uma carta dos irmãos que nunca vinha. Lembro-me de como ela procurava pelos parentes que recebiam correspondência do Líbano, em busca de uma notícia da família - nunca havia nada. E ela chorava muito, mas não dizia nada.
Como me esquecer da dor e da humilhação que sofreu quando um dos irmãos veio ao Brasil após anos de separação e mal falou com ela? Como me esquecer daquele homem frio, indiferente e vazio de coração e de alma? Às vezes, me ocorria que a explicação poderia estar num hipotético fato muito comum numa família: minha mãe poderia ter feito a ele algum mal que eu desconhecia. E fui buscar informações - ela nunca lhe fez mal algum. Ao contrário disso, ele foi e é o irmão que ela mais amou. Ela dizia e diz que eram grandes companheiros, apesar das deliciosas briguinhas de adolescência. De qualquer forma, minha lembrança da presença física de um dos membros desta família é essa: um corpo sem alma que nenhum afeto foi capaz de me inspirar.
Que me perdoem os leitores desta história, mas uma pessoa que muito ama também é capaz de muito odiar. Tranquilamente, posso dizer: amo muitos e odeio alguns até meu último suspiro.
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