O telefone toca e ouço a voz da esposa de um dos meus tios paternos, cuja casa frequento desde sempre, perguntando, mais uma vez como estamos e se minha mãe está bem. Minha infância está ligada a esta família em todos os sentidos: todas as noites de Natal, todas as festas de Ano Novo, almoços e jantares durante o ano, confidências de lado a lado, brincadeiras, discussões, infindáveis "ficar de mal" e "ficar de bem", enfim, compartilhamento de toda espécie - coisas de toda família que bem convive, que se perdoa, que se ama e que se conhece verdadeiramente, mas, principalmente, de uma família cujos defeitos se conhece e se aceita e cujas qualidades se admite e se admira. Ali também muito aprendi com as mulheres de todas as idades: mãe, filhas e netas (meus docinhos de côco, Marcela e Juliana)
A esposa de meu tio, a quem chamo de tia porque assim a considero foi uma mulher forte o suficiente para bem criar seus cinco filhos na ausência do marido que trabalhava com compra e venda de cereais em outros estados, onde permanecia por longos períodos - ficava mais fora do lar do que com a família. E eu não pude deixar de perceber e admirar minha tia, que, sem querer, passou para frente a certeza de que é preciso enfrentar as dificuldades de cuidar de casa e filhos crianças e adolescentes, sem ter o marido por perto. Aprendi que este esforço necessário tinha que ser feito a qualquer custo, pois seu esmorecimento poderia causar danos irreparáveis na criação dos filhos. Acredito que ela tenha muito a ver com minha decisão de "fazer o que é preciso, custe o que custar".
Percebi claramente nesta mulher a decisão de exercer as funções de pai e de mãe durantes vários períodos dos anos em que meu tio ficou fora em busca do sustento da família. Com certeza, as dúvidas, o medo, a insegurança e a solidão poderiam ter encontrado espaço para entrar em seu coração, mas a coragem e o amor pelos filhos puderam superar em grande parte de tudo isso. É uma história que já conhecia de cor e, por isso, como não registrar mais este exemplo? Como não entender os anseios de uma mulher ainda jovem que se esqueceu de si mesma para se jogar nos braços da luta contra as dificuldades que se lhe apresentaram? Ali estava a confirmação da determinação e da força mágica da mulher árabe.
A bem da verdade, minha mãe e ela nem sempre foram as melhores amigas do mundo - muita água correu por debaixo desta relação. De início, minha mãe já trabalhava noite e dia e, além disso, a diferença de idade entre elas também causava certa estranheza. Minha tia formou um grupo de amizades e minha mãe formou outro, mas nossas reuniões sempre foram as mesmas - minha família e a dela se juntavam em todas as oportunidades, mesmo porque, meus primos e nós fomos amigos desde crianças e nada foi capaz de nos separar.
Particularmente, muito me encantava a geladeira cheia da casa de meu tio: lembro-me das antigas bacias cheias de frutas, muitas das quais nunca haviam chegado à minha casa. Lembro-me das enormes porções de carnes assadas, fritas e/ou cozidas postas à mesa, e eu sem saber se devia ou não comer mais de um bife. Esta certeza eu só tinha, quando meus primos e minha tia insistiam em me servir cada vez mais. De qualquer forma, eu nunca abusava. Sempre que via tanta fartura, eu me perguntava como minha tia conseguia tanta comida se meu tio quase nunca estava presente e logo me vinha a resposta meio absurda: achava que, como minha mãe, ela não comia para economizar mais para os filhos. E eu chorava muito, pensando nas vezes em que minha mãe deixava de comer carne para que nós pudéssemos nos alimentar dela . Tudo isto se transformava num misto de remorso, pena e admiração pela minha mãe que jamais falou sobre isso - eu simplesmente via, aprendia e sofria.
Minha tia Lâmia (este é o nome dela) não saía e ainda não sai da cozinha. Embora ela não soubesse cozinhar quando veio para o Brasil, assim como minha mãe, fazia e faz qualquer comida - ela aprendeu com a necessidade e a urgência que só uma mãe muito dedicada é capaz de aprender. O amor de minha tia pelos filhos foi, para mim, um grande aprendizado - como é belo o amor materno!
Minha mãe tudo observava e, trabalhando com linhas e agulhas ia tecendo toalhas e colchas para vender, talvez agradecendo a Deus por estarmos todas ali, desfrutando daquilo que, até então, não podíamos ter em casa.
São duas mulheres muito diferentes na forma, na estrutura, na idade, no jeito de encarar as dificuldades, mas iguais no jeito ímpar de amar e de cuidar dos filhos. Caminhos distintos, casos diferentes, mas a responsabilidade dobrada que caía sobre elas era a mesma. Elas tinham em comum a missão e a sina de sustentar e educar os filhos praticamente sozinhas, dar amor e responder perguntas, como: "Onde está meu pai?" "Por que meu pai demora tanto?" Eram questões que muitas vezes elas mesmas queriam esquecer.
Hoje, eu me pergunto se, em algum momento deste tempo de função dupla elas se lembraram de que além de mães, eram também mulheres.
Tranquilamente, posso afirmar que minha tia e minha mãe são mais do que amigas. Na ausência da sua lucidez e na lucidez de sua ausência, minha mãe sempre diz que minha tia "é a rosa da família".
Dito isto, registro em minha tia, a presença da essência herdada de outras mulheres que, ao longo de mais de dois milênios, foram escrevendo a história de todo um povo. Dito isto, continuo na caminhada de mostrar o que se pode aprender com uma mulher árabe, sim, mas, principalmente, de mulheres que honram sua condição.
Titia,
ResponderExcluirA cada palavra sua conheço mais a história da nossa família. E me emociono.
Aguardo os próximos posts...ansiosamente!
Beijos,
Docinho de côco