quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O telefone toca e ouço a voz da esposa de um dos meus tios paternos, cuja casa frequento desde sempre, perguntando, mais uma vez como estamos e se minha mãe está bem. Minha infância está ligada a esta família em todos os sentidos: todas as noites de Natal, todas as festas de Ano Novo, almoços e jantares durante o ano, confidências de lado a lado, brincadeiras, discussões, infindáveis "ficar de mal" e "ficar de bem", enfim, compartilhamento de toda espécie - coisas de toda família que bem convive, que se perdoa, que se ama e que se conhece verdadeiramente, mas, principalmente, de uma família cujos defeitos se conhece e se aceita e cujas qualidades se admite e se admira. Ali também muito aprendi com as mulheres de todas as idades: mãe, filhas e netas (meus docinhos de côco, Marcela e Juliana)

A esposa de meu tio, a quem chamo de tia porque assim a considero foi uma mulher forte o suficiente para bem criar seus cinco filhos na ausência do marido que trabalhava com compra e venda de cereais em outros estados, onde permanecia por longos períodos - ficava mais fora do lar do que com a família. E eu não pude deixar de perceber e admirar minha tia, que, sem querer, passou para frente a certeza de que é preciso enfrentar as dificuldades de cuidar de casa e filhos crianças e adolescentes, sem ter o marido por perto. Aprendi que este esforço necessário tinha que ser feito a qualquer custo, pois seu esmorecimento poderia causar danos irreparáveis na criação dos filhos. Acredito que ela tenha muito a ver com minha decisão de "fazer o que é preciso, custe o que custar".

Percebi claramente nesta mulher a decisão de exercer as funções de pai e de mãe durantes vários períodos dos anos em que meu tio ficou fora em busca do sustento da família. Com certeza, as dúvidas, o medo, a insegurança e a solidão poderiam ter encontrado espaço para entrar em seu coração, mas a coragem e o amor pelos filhos puderam superar em grande parte de tudo isso. É uma história que já conhecia de cor e, por isso, como não registrar mais este exemplo? Como não entender os anseios de uma mulher ainda jovem que se esqueceu de si mesma para se jogar nos braços da luta contra as dificuldades que se lhe apresentaram? Ali estava a confirmação da determinação e da força mágica da mulher árabe.

A bem da verdade, minha mãe e ela nem sempre foram as melhores amigas do mundo - muita água correu por debaixo desta relação. De início, minha mãe já trabalhava noite e dia e, além disso, a diferença de idade entre elas também causava certa estranheza. Minha tia formou um grupo de amizades e minha mãe formou outro, mas nossas reuniões sempre foram as mesmas - minha família e a dela se juntavam em todas as oportunidades, mesmo porque, meus primos e nós fomos amigos desde crianças e nada foi capaz de nos separar. 

Particularmente, muito me encantava a geladeira cheia da casa de meu tio: lembro-me das antigas bacias cheias de frutas, muitas das quais nunca haviam chegado à minha casa. Lembro-me das enormes porções de carnes assadas, fritas e/ou cozidas postas à mesa, e eu sem saber se devia ou não comer mais de um bife. Esta certeza eu só tinha, quando meus primos e minha tia insistiam em me servir cada vez mais. De qualquer forma, eu nunca abusava. Sempre que via tanta fartura, eu me perguntava como minha tia conseguia tanta comida se meu tio quase nunca estava presente e logo me vinha a resposta meio absurda: achava que, como minha mãe, ela não comia para economizar mais para os filhos. E eu chorava muito, pensando nas vezes em que minha mãe deixava de comer carne para que nós pudéssemos nos alimentar dela . Tudo isto se transformava num misto de remorso, pena e admiração pela minha mãe que jamais falou sobre isso - eu simplesmente via, aprendia e sofria.

Minha tia Lâmia (este é o nome dela) não saía e ainda não sai da cozinha. Embora ela não soubesse cozinhar quando veio para o Brasil, assim como minha mãe, fazia e faz qualquer comida - ela aprendeu com a necessidade e a urgência que só uma mãe muito dedicada é capaz de aprender. O amor de minha tia pelos filhos foi, para mim, um grande aprendizado - como é belo o amor materno!

Minha mãe tudo observava e, trabalhando com linhas e agulhas ia tecendo toalhas e colchas para vender, talvez agradecendo a Deus por estarmos todas ali, desfrutando daquilo que, até então, não podíamos  ter em casa. 

São duas mulheres muito diferentes na forma, na estrutura, na idade, no jeito de encarar as dificuldades, mas iguais no jeito ímpar de amar e de cuidar dos filhos. Caminhos distintos, casos diferentes, mas a responsabilidade dobrada que caía sobre elas era a mesma. Elas tinham  em comum a missão e a sina de sustentar e educar os filhos praticamente sozinhas, dar amor e responder perguntas, como: "Onde está meu pai?" "Por que meu pai demora tanto?" Eram questões que muitas vezes elas mesmas queriam  esquecer.

Hoje, eu me pergunto se, em algum momento deste tempo de função dupla elas se lembraram de que além de mães, eram também mulheres. 

Tranquilamente, posso afirmar que minha tia e minha mãe são mais do que amigas. Na ausência da sua lucidez e na lucidez de sua ausência, minha mãe sempre diz  que minha tia "é a rosa da família". 

Dito isto, registro em minha tia, a presença da essência herdada de outras mulheres  que, ao longo de mais de dois milênios, foram escrevendo a história de todo um povo. Dito isto, continuo na caminhada de mostrar o que se pode aprender com uma mulher árabe, sim, mas, principalmente, de mulheres que honram sua condição.










Neste exato momento, com a manhã se despedindo e deixando a vaga para a tarde chuvosa, minha mãe toma seu café da manhã, após o banho diário. Minha boca está amarga, resultado da pergunta que ela faz assim que desperta: "Onde está minha mãe? Hoje ela não veio me ver". A saudade da mãe (Sara Bittar) falecida há mais de 25 anos, hoje a maltrata mais que nunca, afinal, ela retorna à sua infância e deseja a proteção e os carinhos da única pessoa da família que não a abandonou. E eu minto. Digo a ela que a mãe já está velha e não mais se locomove. Digo ainda que brevemente iremos ao Líbano para ver a mãe na casa que ela ainda julga ser dela. Ela se acalma até a repetição da pergunta momentos depois - serão dezenas de vezes durante o dia.

Após o café, ela tenta dormir no mesmo sofá, mas não tranquilamente como há pouco tempo. Seu sono é tumultuado, quem sabe, por lembranças confusas de um passado que, teimosamente, ainda insistem em machucá-la. Ao final deste sono, sempre diz: "Todos me abandonaram, menos minhas filhas". E volta a se calar por mais um intervalo.

Aqui, frente ao meu computador, digitando este texto, tento contar quantos braços tem a solidão... Qual é o tamanho de cada braço e quão dói a fincada deles em nosso coração. Será que o sangue invisível jamais para de verter? Será que as cicatrizes dos cortes desaparecerão algum dia? Como preencher o vazio deixado por esta solidão na alma de alguém a quem tanto amamos? Como se pode ter momentos felizes, quando temos colada no nosso coração a dor de uma mãe, assim tão especial e tão única? Difícil encontrar respostas para perguntas tão difíceis. E eu? Como lidar com tanta impotência quando minha mente se martiriza em buscar soluções para situações tão dolorosas? Tento buscar no passado. Nas mulheres fortes que fizeram e/ou fazem parte de minha história - nas mulheres árabes que circulam nas minhas memórias. E para ser mais fiel, busco também nos homens árabes que conheci, por que não?

Deixo minha tia um pouco de lado e entro numa outra lembrança pincelada de detalhes que parecem vindos  de histórias em quadrinhos só para adultos.
Minha mãe, como já disse, foi uma transgressora na sua juventude (felizmente). Quebrou regras, ignorou normas criadas não sei por quem, casou, descasou e casou novamente, numa época em que isso significava vergonha. Fez escolhas certas e erradas como todo ser humano. Foi amada, invejada. Amou e desamou. Desafiou e foi desafiada. Lançou moda e fez poses para fotos. Ficou na memória dos que a admiraram e foi esquecida por aqueles a quem amava. Da família, seu nome foi banido - os sobrinhos não sabiam absolutamente nada sobre ela, porque os irmãos não pronunciavam seu nome. A intolerância, a maldade, a incompreensão e o desprezo desta família não tiveram nem têm limites. Na verdade, não sou capaz de entender como minha mãe pode ser tão amorosa, tão próxima dos parentes e amigos e tão solidária, tendo feito parte desta família de sentimentos tão primitivos.

Lembro-me bem de como ela aguardava a chegada do carteiro, na esperança de receber uma carta dos irmãos que nunca vinha. Lembro-me de como ela procurava pelos parentes que recebiam correspondência do Líbano, em busca de uma notícia da família - nunca havia nada. E ela chorava muito, mas não dizia nada.

Como me esquecer da dor e da humilhação que sofreu quando um dos irmãos veio ao Brasil  após anos de separação e mal falou com ela? Como me esquecer daquele homem frio, indiferente e vazio de coração e de alma? Às vezes, me ocorria que a explicação poderia estar num hipotético fato muito comum numa família: minha mãe poderia ter feito a ele algum mal que eu desconhecia. E fui buscar informações - ela nunca lhe fez mal algum. Ao contrário disso, ele foi e é o irmão que ela mais amou. Ela dizia e diz que eram grandes companheiros, apesar das deliciosas briguinhas de adolescência. De qualquer forma, minha lembrança da presença física de um dos membros desta família é essa: um corpo sem alma que nenhum afeto foi capaz de me inspirar.

Que me perdoem os leitores desta história, mas uma pessoa que muito ama também é capaz de muito odiar. Tranquilamente, posso dizer: amo muitos e odeio alguns até meu último suspiro.



sábado, 25 de setembro de 2010


Por outro lado, se não havia família materna, havia a paterna. Esta se tornou a família que conheci e que se fez minha. Também aí aprendi muita coisa. Meu pai, Nicolau (sim, Nicolau e Alexandra) foi um homem bom e amoroso. Não era afeito ao trabalho, embora no Líbano, tenha sido considerado um homem trabalhador. Cuidou da família de oito irmãos por ser o mais velho, casou as irmãs e viu seus compromissos cumpridos, porém, não fez o mesmo com a esposa e suas quatro filhas. Afetuoso e carinhoso, deu às filhas o amor de que era capaz de sentir e em nome desse amor, sua ausência é profundamente sentida por mim todos os dias de minha vida. E meu agradecimento a ele é eterno por ter sido exemplo de honestidade, de caráter e, principalmente, de amor pelas filhas, mulheres de sua vida.

Da família de meu pai há lembranças que também não quero esquecer, porque marcaram minha alma e minha vida. Como poderia me esquecer de uma lágrima que caiu dos olhos de minha tia na massa do pão que seria servido na missa de sétimo dia de morte de seu filho de trinta e três anos? Eu vi, senti, chorei e entendi. Já era o segundo filho morto. Ela perderia mais dois em seguida. Está de pé, mas não mais sorri. Depois de prantear quatro filhos jovens, ela me pergunta todos os dias se estou bem e se preciso de alguma coisa e eu me pergunto como ela ainda pode se interessar pela minha vida com o coração tão despedaçado.  

Como não aprender com essa mulher de olhos permanentemente marejados a lição máxima de como sobreviver após grandes tragédias? É uma mulher forte, embora sinta em meu coração que sua alma grita por libertação. Não posso dizer que ela é resignada. Tampouco posso dizer que sua capacidade de amar expirou – ela tem mais quatro filhos. Só posso dizer que sinto, muitas vezes, a vontade de dar a ela meu ombro ou meu colo para assim fazê-la se sentir protegida e amada. Eu a sinto muito só. Por outro lado, é mais uma dentre as mulheres árabes que conheço e que tanto ensinam a arte de viver.

Minha tia sempre foi uma das melhores amiga de minha mãe. As duas sempre se respeitaram e se viam com muita freqüência, até que ambas não conseguissem mais andar. Falam-se por telefone, o que acho um terrível capricho do destino (?). E minha mãe, por não mais vê-la, pouco se lembra dela e quando se lembra, diz que quer visitá-la sem saber que isso não se dará.

Alexandra sente solidão e também não sabe – apenas sente. Já não recebe visitas, porque as pessoas não têm paciência e se desculpam dizendo que não querem vê-la assim tão esquecida de suas lembranças. Eu não me importo com esse tipo de ausência – simplesmente, tento cobrir as perdas. Aí, me ocorre que ela sempre conviveu com uma terrível solidão. Perdeu o pai ainda criança e os irmãos, depois de certo tempo, saíram do Líbano para trabalharem na África. Em seguida, todos se casaram e tomaram seus rumos. Ela veio para o Brasil, onde, sem sequer conhecer a língua deste país, iniciou o que seria sua grande jornada de pedras e de solidão.

Meu pai, aqui chegando, passou a trabalhar com vendas de cereais por atacado, atividade que exerceu por poucos anos, porque logo abraçou o vício de jogos de azar. Perdeu o que tinha e nunca mais trabalhou. Ela assumiu, então, o papel de mãe e de provedora. Foi discriminada e alvo de críticas, foi ignorada e humilhada por parentes, afinal, era pobre e para o povo árabe, dinheiro é fundamental - não tê-lo é uma condenação ao desprezo e à exclusão. Tendo sido banida da própria família e, mais tarde, excluída pela maioria dos parentes, entregou-se inteiramente a duros trabalhos e à criação das filhas. Esqueceu-se da vida abastada que levou quando solteira, esqueceu-se do orgulho que a caracterizava por ser modelo de elegância e de bom convívio social – esqueceu-se de si própria e, na sua enorme solidão, chorava às escondidas: a saudade da família sempre foi seu sua grande dor.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Vidros e Cristais - A História

Fim de primavera. Sol escaldante e calor insuportável. Ela é acordada com vagar e com afetuosas palavras que a fazem sorrir. Reclama e diz que as pessoas não devem tomar banho duas vezes por dia. Difícil convencê-la de que este é o seu primeiro banho do dia, mas tudo se resolve e ela reaparece perfumada, sorridente, com um colar de pérolas cinza, anel de ouro e relógio de prata. É assim que ela gosta de se ver no alto de seus cem anos (ou mais, quem sabe?). Cabelos curtos inteiramente brancos, menos rugas do que o esperado, pele macia e clara. Não dispensa os cremes, o gel, a lingerie, o esmalte carmim nas unhas das mãos e dos pés impecavelmente arrumadas pela manicure que preserva ao longo dos anos. Orgulhosamente, apresento Alexandra, minha mãe, uma senhorinha toda feita de amor, de graça e de beleza.

Olho para minha mãe que dorme serenamente no sofá de sempre. Passo a mão pelo seu rosto e lamento por vê-la tão pequenina e tão indefesa. Vontade grande de vê-la novamente andando pela casa executando as tarefas do dia a dia com a presteza de uma formiga. Fecho os olhos e as lembranças me vêm claras e fortes – lembranças boas e outras não tão boas. Penso agora que preciso não me esquecer de nada, porque sei que entre ela e eu não há espaço. A minha vida se confunde com a dela. A história dela se mistura com a minha.

Lembro-me das primeiras histórias que conheci a respeito de minha mãe. Imigrante libanesa, veio ao Brasil com meu pai e aqui criou as filhas. Na sua terra natal, deixou mãe e irmãos que jamais a procuraram – fora completamente abandonada pela família. Eu não entendia bem este abandono, mas sentia a sua dor no seu canto das madrugadas, quando fazia queijos para serem vendidos. E eu chorava muito ao ouvir as melodias entrecortadas pelos seus soluços. Eu era criança e já havia aprendido a odiar as pessoas que a faziam chorar. Era uma raiva que eu carregaria para sempre.

Soube ainda que, ainda na casa dos pais, levou uma vida cheia de mimos e cuidados. Era um exemplo do bem vestir. Politizada, sempre foi uma mulher à frente de seu tempo e nada a detia – transgrediu o quanto pôde, fez as próprias escolhas, cometeu erros e acertos, assumiu as consequências e jamais aceitou as negativas que a vida lhe enviou.

Uma boa história

Uma boa história vale pelo que ela pode oferecer ao ouvinte ou ao leitor na sua incessante busca pela beleza, pela emoção, pela lágrima sentida e pelo sorriso que, de repente, se abre em festa. A história que passo a contar em pequenas gotas de vidro barato ou de cristal de grande valor é uma exigência de meu espírito, um anseio de meu coração, e, principalmente, um presente aos que podem e querem compreender o que há de eterno e de sagrado nas profundezas da alma da mulher árabe. 
Não é uma história sobre a cultura de países árabes, porque jamais por lá estive. Não é uma história sobre véus, burkas ou dança do ventre. Não é ainda uma história sobre direitos e deveres de homens e mulheres árabes. Não é uma história para informar - é uma história que vivi, que fez em mim o milagre de conhecer fatos pelo lado de dentro e pelo lado de fora: senti e expliquei; ouvi e repeti; vi e aprendi; odiei e não me arrependi; amei e nunca esqueci; morri muitas vezes e à vida voltei e sou o que sou pelo tanto que senti, ouvi, odiei, amei, morri e ressustei! 

Boa leitura.

Vidros e Cristais

"O anel que tu me destes era vidro e se quebrou... O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou..." (Anônimo).

Do nosso imaginário infantil, a idéia da resistência e da imortalidade dos sentimentos vem fortemente ligada à sensação de eles podem ser "quebrados como vidro" diante de obstáculos e dificuldades de quaisquer natureza. Ao lado desta sensação, vem também a certeza de que o sentimento também se assemelha ao cristal - depois de trincado, não há volta: perderam-se a pureza, a transparência, o brilho e o valor.

Hoje, vejo o cristal como algo que sempre se mostra distante e frio ante meus olhos. Tudo tem que ser muito para que dure e seduza: muito cuidado, muita beleza e muito brilho.O vidro me é mais próximo, mais quente, mais aconchegante e mais fácil de ser tocado. Mas, posso agora dizer que o cristal não é, senão, um vidro bem tratado? Então, quebrados ou trincados, sentimentos têm peso, medida, temperatura e forma assim como VIDROS e CRISTAIS. Tempo? Quem pode saber? Há os duram até o final do primeiro beijo e há os que jamais terminam - é só consultar o coração...